A Sétima Ordem – Capítulo 1: O Diário

Liz, Edimburgo, dezembro, 1985

Lavínia olhou pela última vez para o rosto de Martha. Os olhos fechados da velha senhora, a pele fria. Parecia feliz. Tocou suas mãos geladas e olhou, por um instante, a pele enrugada, pálida, sem vida. Fechou os olhos e sentiu as lágrimas escorrerem. Não havia sentido tanta dor assim durante o velório, mas agora que o caixão estava sendo fechado, parecia que o mundo desabava, trazendo a certeza de que estava sozinha.

Afastou-se do caixão para que os homens a levassem. Enquanto caminhava ao lado do cortejo até o local do sepultamento, sua mente ficou completamente em branco. Não conseguia raciocinar direito. Era como estar no meio de um pesadelo, onde nada parece real, de onde se deseja desesperadamente sair.

Acompanhando o velório iam apenas Lavínia, um casal de idosos que morava no apartamento em frente, e Rose, com quem Martha trabalhou durante 30 anos como enfermeira, no Hospital Geral de Chantal, antes de se aposentar. Rose não parava de chorar desde que chegara. De vez em quando, balbuciava algumas frases quase ininteligíveis que a garota ouvia, sem realmente prestar atenção.

Martha não tinha família. Ela havia criado Lavínia desde quando esta podia se lembrar. Era sua mãe, seu pai, toda a família que tinha. Agora, enquanto via o caixão descer ao túmulo, em meio a um turbilhão de sentimentos, ela sentia também medo. Tinha 17 anos, e não sabia o que fazer.

Terminado o sepultamento, permaneceu ali, até que um a um, todos se foram e a deixaram sozinha. Sua mente parecia anestesiada. Nem ao menos respondeu, quando Rose tocou em seu braço e disse: “Lavínia, quer que acompanhe você até sua casa?”. Ao invés
de responder, a garota olhou para ela e balançou a cabeça negativamente. Rose entendeu que ela precisava ficar um pouco mais, e se foi. Lavínia só se moveu dali, quando começou a sentir frio e se deu conta da chuva que caía. Estava ensopada.

Foi caminhando sem pressa, todo o caminho do cemitério até o prédio onde vivera com Martha, e onde agora passaria a viver sozinha. Enquanto andava pela rua, a mente parecia começar a sair do estado de dormência. Passou a recordar-se de momentos que vivera com Martha. Sentia que poderia ter aproveitado melhor seu tempo com ela. Naquele momento, não pensou no que faria a partir de agora. Não pensou nas contas que continuariam chegando e que teriam que ser pagas, nem no supermercado que teria que fazer, nem no apartamento que teria que cuidar. Só pensava no vazio que sentiria ao entrar em casa, na ausência da sua voz.

O único remorso que sentia era o de não ter insistido em fazer uma certa pergunta. Ela se lembrava claramente da primeira vez em que perguntou à Martha onde estavam sua mãe e seu pai. Lembrava-se de que uma outra criança da escola havia lhe feito essa pergunta, ao notar que Martha sempre ia buscá-la no final das aulas, e nunca havia outra pessoa. Todas as vezes em que Lavínia lhe perguntava, Martha respondia que não sabia.

No início, ela não aceitou essa resposta e insistia na pergunta a cada dia das mães e dos pais, a cada reunião de pais da escola. Martha apenas dizia que ela havia sido deixada no hospital em que ela trabalhava e que a acolhera. Insistiu na pergunta mais algumas vezes conforme crescia, na esperança de que a resposta um dia fosse diferente, mas nunca mudou. Então, simplesmente desistiu de perguntar. Chegou à conclusão de que um dia a mulher que a criara como se fosse
sua verdadeira mãe se sentiria segura para contar tudo o que sabia. Isso porque ela não queria acreditar que Martha não soubesse de nada. Tinha esperanças de que um dia descobriria tudo sobre sua verdadeira família.

Mas esse dia não veio. Se fosse verdade que Martha sabia de alguma coisa que não queria contar, levava para si. Lavínia soube disso no momento em que a encontrara caída no chão do quarto, no dia anterior, sem respiração nem pulsação, resultados do ataque fulminante do coração. Assim que percebeu que ela não acordaria mais.

Imersa em pensamentos, quando deu por si, já estava dentro do apartamento, no número 14 da Rua Narbonne. Sem se importar com a janela aberta que deixava entrar a chuva e molhava o piso da sala, nem com o fato de que estava com as roupas encharcadas, deixou-se cair na cama e fechou os olhos, mas por muitas horas não pôde dormir.


Estando para completar um mês da morte de Martha, Lavínia encontrava-se no velho apartamento, em um sábado frio, porém ensolarado. Agora, já começava a acostumar-se com a solidão, embora ainda tivesse visitas ocasionais, como os amigos da faculdade, que apareciam aos finais de semana, e Berta, a senhora que ocupava o apartamento da frente com o marido, que esporadicamente vinha trazer-lhe bolo e perguntar se precisava de alguma coisa. Nos primeiros dias, costumava irritar-se ao ouvir o som da campainha, pois não queria receber visitas e preferia ficar sozinha, mas assim que as pessoas iam embora, desejava que tivessem ficado mais.

Aos poucos, começou a perceber que tudo mudara. Sua rotina, seu sentimento em relação ao ocorrido, o cessar da dor no peito. Começou a aceitar. Mais ainda, sentia que ela mesma mudara. Sentia-se mais adulta, agora que precisava tomar conta de si mesma. Era a dona da casa e de toda a responsabilidade que a acompanhava.

Naquele fim de semana, ela pediu licença às visitas para pôr a casa em ordem. Seus primeiros dias sozinha no apartamento não haviam sido dos melhores. Além de não estar acostumada, não se sentia nada inclinada a nenhum tipo de afazeres domésticos, por isso, logo as louças sujas começaram a formar pilhas e a poeira tingia a mobília de cinza. O ápice foi atingido quando percebeu que não tinha mais roupas limpas para usar.

Deu-se conta de que sua vida precisava de um rumo e, para começar, o apartamento necessitava de uma faxina. Saiu de seu casulo de luto, sentindo-se mais forte e mais capaz.

Limpando, esfregando, varrendo e lavando, nem percebeu as horas passarem. Só parou para lanchar, horas depois, quando percebeu que estava faminta.

O apartamento inteiro estava carregado com as lembranças de Martha, desde as toalhas de mesa até a disposição dos quadros e dos móveis. Aproveitou então para mudar tudo. Achou que poderia ser mais fácil viver no lugar, se este não estivesse mergulhado em pequenos fragmentos de memória. Jogou fora o vaso remendado que se lembrava de haver quebrado quando tinha sete anos, e colado escondida antes que Martha percebesse.

Pegou uma caixa de papelão vazia e nela guardou todas as fotos, menos uma que gostava muito. Era uma foto tirada no último verão, em que ela e Martha apareciam sentadas na beira do cais. A última viagem que fizeram juntas. Esta foto ela manteve na mesa de centro. Era uma bela foto e não merecia ficar escondida.

Já caía a noite quando iniciou a arrumação do último aposento. Deixara o quarto de Martha por último. Abriu as cortinas, tirou a poeira que se acumulava sobre os móveis e varreu todo o quarto. Limpou os vidros dos espelhos e das janelas. Abriu uma das portas do armário, em que a maioria das roupas estava pendurada. O móvel ainda mantinha o perfume de Martha, impregnado em todos os seus pertences. Ela retirou de cima do armário uma velha mala empoeirada, abriu-a e começou a enchê-la com as roupas que estavam penduradas nos cabides ou dobradas nas prateleiras.

Há poucos dias havia decidido doar as roupas de Martha para um asilo, assim que se sentisse preparada. Por ora, elas ficariam separadas, prontas para ser despachadas assim que ela sentisse que podia fazê-lo. Terminou de retirar e dobrar todas as roupas e fechou a mala. Começou a verificar as prateleiras superiores. Lençóis de cama, travesseiros e cobertores. Tudo isso poderia ser doado também. Na esperança de encontrar mais itens para doação, afastou todos os objetos para ver se havia mais alguma coisa. Bem no canto de uma das prateleiras, viu que havia uma pequena caixa, que certamente não seria vista se ela não estivesse em cima da escada de três degraus. Pegou a caixa e abriu. Assemelhava-se a uma caixa de música. Dentro dela, havia algumas joias que ela suspeitava que não tivessem muito valor, algumas notas de dinheiro, e uma pequenina chave que ela não sabia para que servia. A princípio, não tocou no que havia ali, em vez disso, fechou a caixa e a colocou de volta no mesmo lugar onde a encontrara. Pensaria nela depois.

Começou então com as gavetas. O armário continha três gavetas, sendo a última a maior das três. Abriu a primeira e checou o conteúdo. Documentos, um molho de chaves, alguns remédios e pequenos objetos diversos, largados. Também não quis tocá-los, não sabia exatamente o que iria fazer com os documentos e todo o restante dos objetos poderia muito bem no futuro ir para o lixo. Mas não hoje.

Abriu a segunda gaveta. Roupas íntimas e meias. Decidiu não retirá-los também. Agora só restava a última gaveta. Tentou abri-la. Trancada. Percebeu então que era a única das três gavetas que precisava de uma chave. Retirou o molho de chaves da primeira gaveta e experimentou uma a uma, sem sucesso. Estava começando a sentir-se frustrada, quando se lembrou da chave que estava dentro da caixinha de joias, na prateleira. Subiu novamente na escada e retirou outra vez a caixa.

Sentou-se na cama com a caixa ainda fechada sobre o colo. A janela do quarto aberta deixou entrar um vento frio que lhe provocou arrepios. Sentiu uma sensação estranha, como se estivesse invadindo a privacidade de Martha. Afinal de contas, se a gaveta estava fechada era porque ela assim havia desejado. Ao mesmo tempo, um sentimento mais forte, uma ideia começou a despertar em sua mente. O que Martha poderia ter a esconder? Viviam como mãe e filha, não havia nada sobre ela que não tivesse conhecimento. Ou havia?

Entre a culpa e a curiosidade, deixou que a segunda vencesse. Retirou a pequenina chave de dentro da caixa, encaixou-a no orifício e girou. A gaveta abriu.

De dentro da gaveta retirou um envelope pardo, grande e envelhecido. Dentro dele havia um livro e um envelope menor. O livro era pequeno, de capa preta em couro. Não era possível decifrar o título, pois em vez de letras havia símbolos prateados que, à primeira vista, pareciam desenhos primitivos. Tinha uma aparência antiga e cheirava levemente a mofo. Tomando cuidado para não deixar nenhuma folha cair, abriu o livro para examinar o conteúdo. A primeira folha estava em branco, exceto por uma linha manuscrita na parte inferior.

Notou que a caligrafia era corrida e feminina. Havia apenas duas palavras e uma data: Liz, Edimburgo, dezembro, 1985.

Folheando as páginas seguintes, percebeu que o suposto livro, na realidade, parecia ser um diário. A partir da data inicial, 22 de dezembro de 1985, havia outras folhas datadas e manuscritas, na mesma letra feminina. Além da data, nada pôde entender a respeito do conteúdo, pois estava escrito inteiramente em símbolos, assim como a capa. Poderia ser algum tipo de idioma desconhecido? Veio à sua mente, automaticamente, os ideogramas orientais, mas estes eram diferentes. Em todas as páginas havia desenhos. Nenhum deles parecia fazer sentido, mas não a agradavam. Aparentemente, quem escreveu aquele diário tomou o cuidado para que o conteúdo fosse mantido em segredo.

Depois de folheá-lo, distraída por alguns minutos, percebeu que as últimas páginas estavam em branco. A última folha escrita parecia ter sido anotada às pressas, pois os símbolos estavam rabiscados e em algumas partes a tinta estava borrada. Chamou-lhe atenção a data no alto da folha. Exatamente um dia antes de seu nascimento. Seria coincidência?

Sentiu, outra vez, um vento gelado nas costas. Fechou o livro cuidadosamente, deixando-o sobre a cama, e se levantou para fechar a janela. Ao retornar, voltou sua atenção para o envelope menor. Dentro, havia somente uma fotografia de uma paisagem e um papel dobrado. O papel dobrado parecia ser uma carta, mas para sua frustração, estava escrita com os mesmos símbolos do diário. A fotografia não trazia nenhuma anotação. Parecia ter sido tirada do alto de um precipício, de onde se via o mar abaixo e uma ilha bem pequena distante. Não era possível distinguir o local.

Guardou de volta, dentro do envelope, a foto e o pedaço de papel. Decidiu analisar melhor aquela estranha caligrafia outra hora. Por ora, cansada e sonolenta, pôs o livro e o envelope pequeno dentro do envelope maior, guardou-os de volta na gaveta, trancando-a com a chave, e foi se deitar. Depois de alguns minutos pensando nos símbolos e nos desenhos, ouvindo a chuva recém-começada a castigar a janela do quarto, e o vento que fustigava as árvores da rua, finalmente pegou no sono.

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